domingo, 26 de junho de 2011

Os Ossos do Arco-íris

"Deixo aqui um enxerto de um grande senhor do fantástico e do horror: David Soares; embora esta parte me tenha fascinado, não devido à fantasia, mas devido à crua, irónica e sarcástica descrição, do real."

Marisa aguardava pelo autocarro. Não estudava em Usina dos Limoeiros. Os pais deixaram a casa de Loures quando faliu a empresa onde Césio era empregado. Barbara não trabalhava e as poupanças do casal não permitiam a permanência na casa grande que alugavam nas traseiras da Junta de Freguesia. Mudaram-se para o local mais barato que encontraram no catálogo imobiliário: Usina dos Limoeiros.
O homem era camionista e a empresa para a qual trabalhou durante onze anos, a Transales, enviava-o regularmente para Itália e para Inglaterra. A companhia não teve hipótese de competir com as suas rivais mais ricas e os investimentos aplicados na modernização dos equipamentos foram um golpe irrecuperável no seu capital. Fecharam. Alguns camionistas conseguiram colocar-se em outras companhias; umas melhores, outras piores. Césio foi contratado por uma das últimas.
Tinha jeito para aprender línguas e falava muito bem o italiano e o inglês. O que mais gostara de ver em Inglaterra foram os corvos que procuravam nas estradas objectos caídos dos carros. Eram como os pombos de Lisboa, pensou, mas mais barulhentos; não tinham medo nenhum. Nunca viu corvos tão grandes na estrada que subia de Southampom para Birmingham. O verde inglês lembrava-lhe a vegetação invernal de Bucelas; o mesmo tom verde-escuro, quase preto sob o céu de chumbo.
A Itália era mais luminosa, mais suja. Visitou Veneza e imaginou que os seus cidadãos viviam sobre um esgoto: a cidade fedia! Não gostou muito de Itália. As italianas eram mais bonitas que as inglesas, contudo.
Nunca enganou a mulher; a não ser que se considere traição passar umas horas na companhia de uma prostituta num bar dalterne, a duzentos metros da auto-estrada, uma noite ou outra. Não era. Era apenas foder; como se saltasse do camião para urinar. Normalmente ausentava-se durante meses; tinha de foder alguém, algures.
A primeira vez que Barbata chupou o pénis do amante engoliu o esperma; algo que nunca fizera com o seu marido. Sentiu-se ousada. E agoniada. Pensou que ia vomitar, mas o enjoo desapareceu depressa, deixando-lhe um sabor a manteiga salgada na boca, como se tivesse comido a pior torrada da sua vida. Que mais havia para fazer sozinha em casa? A filha estava na escola a fingir que estudava e o marido estava a viajar a fingir que trabalhava e ela estava a aborrecer-se a fingir que vivia. Por isso trajava o seu melhor vestido, o mesmo que levava à missa aos domingos, e aguardava que o amante a agarrasse com as suas mãos grandes e a levasse para a cama. Não era trair – amava Césio de uma forma doméstica e previsível –, era apenas foder. Normalmente o seu marido ausentava-se durante meses. Tinha de foder alguém, algum dia.
David Soares, em “Os Ossos do Arco-íris”
http://cadernosdedaath.blogspot.com/